Ao longo da vida, se formos minimamente conscientes e inteligentes, vamos fazendo a nossa introspecção e daí vão advir algumas catarses para que possamos deixar para trás o que nos marcou mal, e seguir em frente.
Ontem foi um desses dias. Um dia em que fui buscar tudo o que se havia passado nesse mesmo dia há uns anos atrás, o que eu faria se fosse hoje, o que se teria evitado. Continuo a olhar para o episódio com tristeza, eu não merecia, mas também não tinha merecido outras desconsiderações antes que, permiti...portanto há que aprender que quando se desenha uma linha vermelha, mesmo que não pulemos fora, o alerta está lá, deve conversar-se civilizadamente acerca disso e se uma das partes não vê o que tem à frente, o nível de desenvolvimento e de querer de ambos não está, perdoem-me o pleonasmo nivelado, e não vale a pena seguir. Eu segui....
Foi um homem que amei, amei mesmo. Apareceu na minha vida numa altura inesperada e se calhar pela altura inesperada tropeçámos um no outro. Ao início era tudo muito mágico, aqueles olhos azuis transbordavam paixão, tal não era a intensidade e eu....bem, eu cheia de medo de me envolver a sério, quando já estava absolutamente presa na teia da sedução, das palavras bonitas, do conceito de família, do querer (eu pensava que era querer).
Calhou ele fazer anos e nós ainda com pouco tempo de relação na altura. É um homem com características complexas e quando se fala da pessoa de quem gostamos, não é chegar à loja e escolher uma coisa qualquer. Livros de vez em quando oferecia-lhos, sem nenhuma festividade associada. Andava a tentar fazer uma horta na marquise e eu lá ia encontrando um ou outro livro interessante para agricultores...de marquise. Em termos de casa, era uma pessoa despojada. O mínimo indispensável, sem grande conforto, gosto ou história. Aliás, a primeira vez que entrou em minha casa, foi logo dos primeiros murros que levei: porque a minha casa estava cheia, porque não devia ter a mesa assim, porque não gostava das minhas partes de parede em vermelho, porque não gostava dos varões nem dos meus cortinados e...que a minha filha tinha demasiados brinquedos. Não que eu tenha pedido opinião, não que não a pudesse dar sem a mesma ter sido solicitada, mas tanta crítica, deitou-me muito abaixo e pareceu-me desadequado e desagradável. Gosto da minha casa assim, tenho inclusive peças de família e uma ou outra relíquia e é engraçado que as pessoas que lá entram a elogiam e ficam espantadas com algumas peças que tenho...não lhe agradou, tudo bem, mas escusava de ter sido tão duro. Eu permiti, e abri espaço a mais.
O mais era que ele é uma pessoa com um vasto rol de conhecidos, embora ele ache que são amigos, e um rol ainda maior de mulheres com interesse nele. Sim, é um homem à vista interessante, intenso, serve-se da profissão que tem para apelar a um certo glamour e obviamente há sempre quem goste de dar o braço ao status e não à pessoa.
Eu dei o braço à pessoa, mesmo com aquele seu feitio, porque não preciso do status de ninguém. Nem assim deveria ser, nem tão pouco é minimamente interessante andar ao reboque de um Doutor em qualquer coisa, quando eu também o sou nas minhas virtudes.
E toda esta vaidade muito a tocar o Dorian Gray, fazia com que não houvesse um dia sequer, e se eu tenho boa memória, em que não viesse à conversa a ex-namorada mexicana que era poliglota e sobre dotada, a argentina que num momento mais quente lhe disse que ele era o "milagro portugues", a maestrina americana com quem namorou uns anos e que era linda e onde chegava qualquer homem virava a cabeça e que, mesmo agora sendo casada com outra pessoa, quando vinha a Portugal dormiam juntos, e a romena que não sei o quê, e a que fazia análises clínicas, e a mãe do filho, e a empregada que tinha uma paixão por ele....eu estaria aqui um dia a enumerar todas as mulheres com quem teve interacções íntimas e o quão isso lhe agradava, e que todos os dias a meio de um almoço, de um jantar, de um filme ou até nos nossos momentos mais íntimos, ele recordava-as e eu...ouvia, sorria. Mas será que eu nasci mesmo para isto, penso eu agora!?
Cheguei a perguntar a um amigo ou outro mais íntimo se isto é normal e se havia necessidade para eu, que o amava e ele dizia amar-me, ser exposta a isto. Não é uma questão de ciume. Trata-se de respeito mesmo. Houve um dia que eu respondi com cara de poucos amigos "que estava farta daquele tipo de assunto" - foi a minha grande falha. Segundo ele tratei-o muito mal e só não acabou logo tudo comigo...porque me amava. Algo aqui está trocado. E então, sempre que lhe apetecia magoar, era isso que vinha à superfície. Que eu tinha sido muito agressiva com ele - com a peculiaridade de já nem se lembrar o que se tinha passado. Reteve a minha reacção, mas não a acção que a gerou.
Bom, voltando atrás e à cena triste e desnecessária daquele aniversário. Para uma pessoa despojada de objectos, vá, referia todos os dias o relógio Raymond Weil com um rubi que uma "amiga" lhe tinha dado - foi decerto a prenda perfeita. Mas aqui a menina, não tendo condições financeiras para tal, pensou, e tendo um namorado, que na verdade até já me tinha pedido em casamento que tinha uma adoração por camisas, sobretudo azuis ou brancas e tinha um armário quase bicolor como eu nunca tinha visto, resolveu ir à procura de uma camisa num tom de azul que ainda não figurasse na paleta. Fui a uma loja de que gosto, onde costumo comprar roupa para mim, mas mais valia esse dia, desse ano ter estado quieta.
Quando chego, antes de irmos jantar, a transbordar de amor pelos olhos, pelos 51 anos da pessoa que eu amava, começaram os comentários desagradáveis a subir de tom, ainda por cima estava lá em casa outra pessoa e naquele momento eu estava tão incrédula que perdi ponta de sangue:
Antes sequer de ver o que era vociferou com um tom algo agressivo que não admitia que lhe comprassem roupa (quando uma ou outra peça vestida noutra ocasião me tinha dito terem-lhe sido oferecidas), que não gostava da marca, que por acaso era a Gant e confesso que foi certamente a camisa desportiva mais dispendiosa que comprei até hoje, atirou o embrulho para o sofá sem o abrir e começou por dizer que lhe estava a estragar o aniversário, eu balbuciei que tinha talão de troca e que mesmo não gostando, entre meias e boxers podia resolver o problema, mas entretanto abriu o embrulho, fez um olhar jocoso, a minha sensibilidade sentiu ali alguma teimosia, mas mesmo assim disse que não gostava do colarinho porque tinha botões - isto entre blasfémias, fazer-me sentir a pessoa mais insensível do mundo e que infelizmente eu ainda não o tinha percebido porque gosta de receber outro tipo de prendas. Percebo....relógios dos bons, aos quais a minha bolsa não chega. Não sou a amiga milionária.
Se me perguntarem o que mais me magoou neste triste episódio, a maior de todas as humilhações e que naqueles minutos foram várias foi a sua conclusão:
Com um sorriso forçado disse-me assim: "desculpa, mas de facto não acertaste". Chorei por dentro. Foi de uma falta de empatia que nunca imaginei. O embrulho andou por ali perdido uns dias, até que se dignou a ir trocar por outra coisa, já que o orgulho não lhe permitia ficar com a camisa, e resolveu trazer umas calças de ganga. Nesse dia estava contentíssimo a dizer que eram das melhores calças de ganga que tinha vestido, porque se sentia muito confortável, a ganga era suave e tinha alguma elasticidade. Ainda consegui esboçar um sorriso e dizer: ainda bem.
Se fosse com a pessoa que sou hoje, tinha pegado nos meus pertences, incluindo o péssimo presente, ter-me-ia despedido desejando um feliz aniversário e teria desaparecido para sempre. Mas não, pensei que fosse mais um tique de mau feitio e tolerei muitas mais desconsiderações. Este dia ficou marcado. Não me esqueço que aquela pessoa cumpre aniversário no dia 20/11, não me esqueço de quanto o amei, e não me esqueço do quanto me magoou ao longo do tempo.
Até que as desconsiderações misturadas com repentes de paixão eram tantas que um dia igual a tantos outros e sorrindo-lhe, quase que lhe pedindo que me agarrasse e não me deixasse cair no abismo, lhe disse que precisava afastar-me um tempo. Estava perdida e a precisar de carinho. E ele, numa video chamada como tantas outras, só foi capaz de dizer que de facto estávamos num beco sem saída e que o "oásis" se tinha perdido. Fica bem, Adeus. Foi isto.
Afinal não foi só aquele aniversário que me ficou marcado, mas também o dia do fim. E um mês depois em que li uma notícia acerca de um medicamento importante para a vida dele que tinha sido retirado do mercado e que me respondeu que iria à farmácia verificar. A partir daí o silêncio total, até umas amigas me alertarem que aquilo da parte dele nunca foi amor, porque em semanas o tinham apanhado no Tinder em engates - e eu juro que como pessoa e até como para a tal profissão que tem, me desiludiu totalmente e ficou abaixo do nível de outros que me magoaram, mas que pensava eu eram pessoas com menos "educação".
Uns meses depois eu faço anos, e após este silêncio ligou-me como se no dia anterior tivéssemos falado como grandes amigos, no Natal uma mensagem com direito a fotografia meio alucinada dele com os sobrinhos pequenos a deitarem os 3 a língua de fora, no aniversário da minha filha nova mensagem...criança essa que ele sabia os problemas que tinha com as figuras paternais, criança essa a quem ele fez promessas e a quem na última vez que pernoitámos na sua casa e penúltima vez em que ambos falámos enquanto casal, andou com ela a ver como iriam redecorar o quarto para ela. Pois esta mesma pessoa, no dia em que se aproveita do meu pedido de carinho....abandonou duas mulheres que o amavam, cada uma do seu jeito, sem qualquer toque de piedade, carinho, afecto.
Não tenho pejo em dizer que amei, que só amei a este nível 2 pessoas na vida e ele tinha sido uma delas. Resultasse ou não a relação, nunca considerei que assim fosse o seu final, sem respeito, sem empatia alguma. Não que já não conheça o sofrimento, daquele que nos arranca as veias e causa dor em sítios inconsideráveis, mas com tanto requinte...foi único.
E termino com um escrito do Pedro Chagas Freitas, tão a propósito do que vivi:
"Nenhum vaidoso sabe amar. Sabe, no máximo, amar-se.
É uma coincidência, por vezes, precisar dos outros para se amar melhor."
Comentários