Há uns bons anos que ando para ler esta obra enigmática que o Kafka escreveu ao seu pai e que nunca lha chegou a enviar. É uma obra biográfica, o deixar em papel alguns dos seus dramas e conflitos interiores.
"A minha actividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo de que não me podia queixar junto do teu peito." escreve ele algures e sei que é com esta carta que se consegue descortinar o homem real por detrás do um homem que parece por vezes alucinado se nos embrenharmos na escrita de um "Processo", "Metamorfose" e afins.
Vou lê-lo em breve - está na altura. Está na altura de eu própria escrever quiçá uma carta ao meu pai, carta essa que tão pouco espero entregar-lha, mas que ao escrever-lha e colocar o seu nome no campo do destinatário, me vai servir como uma espécie de catarse por tudo aquilo que ao longo destes mais de 40 anos ficou por dizer - de bom e de menos bom, de banal e de mais polémico. Trata-se apenas de nós os dois - eu filha, ele progenitor do qual eu neste momento não quero nem quererei justificações. Quero apenas dizer-lhe coisas. Coisas que uma mulher diz a um homem a quem deve a vida, mas não a sua vida. A quem deve o seu genoma, o seu ADN, alguns traços genéticos os quais não podemos mudar...mas não lhe deve memórias nem amor...
...mas a consanguinidade é tramada e não lhe devendo amor eu tenho um relativo orgulho de ser filha daquele homem. Da inteligência superior, da pose elegante e distinta, do saber que acumulou ao longo dos anos, de saber pilotar aviões que deve ser bem giro, de saber tocar piano sem ter aprendido uma nota de música, de saber falar uma série de idiomas, alguns deles bem difíceis, de ter até estudado num Seminário e daí ter ido parar a Moscovo dado a sua mente prodigiosa e tantas outras aventuras vividas enquanto civil, militar, preso político.
Penso: eu sou filha deste indivíduo. Eu existo porque ele existe e tantas vezes a minha avó materna parava a olhar para mim e dizia: "tens o teu pai no sangue, consegues ter um carisma que atrai as pessoas" - eu era miúda, não percebia muito bem o que ela queria dizer com isto. Hoje apenas vejo, do pouco que conheço que talvez sejamos mais parecidos no porte meio enobrecido, numa figura tendencialmente elegante, embora eu dada a muitos maneirismos, e ele, ao que sei, capaz de comer com as mãos miolos de macaco no meio da selva.
E porquê esta temática agora: fizeram-me chegar este documento em que falavam sobre ele e deu-se um click e sinto que o tempo urge. Seguindo o exemplo de Kafka, também eu preciso de expiar uma série de coisas e escrever uma Carta ao senhor meu pai.
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