Há precisamente um ano atrás a situação do meu padrasto tornava-se irreversível, mas até eu, que antevejo com alguma clareza de espírito que o fim se aproxima, ainda não me tinha apercebido de tal tragédia. É mais fácil percebê-lo com os outros, do que com os nossos. Essa clareza só me assolou umas escassas horas antes da morte dele e em que me lembro de ter dito à minha irmã, com muita calma, que a jornada dele connosco estava por horas....estava. No momento em que tivemos esta conversa há quase um ano atrás, ele resistiu por mais 5/6 horas. A cada minuto eu estremecia só de pensar que o telefone naquela madrugada ia tocar....e tocou mesmo.
É muito recente, e vai parecer sempre que foi “ontem”. Tenho a voz dele claríssima a ecoar na minha cabeça, as graçolas, as brincadeiras...tudo, como se tivesse estado com ele há pouco. Na verdade não me despedi, não sei se por culpa do COVID, mas a verdade é que por uma ou outra razão, não me tem sido possível despedir dos meus mortos. Fico com aquela sensação que vou estar com eles em breve, por isso não houve despedida. Continuam tão vivos dentro de mim.
Estávamos no décimo oitavo dia antes da sua morte, momentos terríveis para ele, que sofria e muito, e para a minha irmã que, por culpa deste vírus maldito, teve que gerir quase tudo sozinha. Eu, nem a Ponte podia passar. Padrasto que foi pai, aos olhos da lei e do covid não o é. Para além do problema oncológico e depois de muita luta levada a cabo pela minha irmã para o hospital o aceitar, ele deu entrada e diagnosticam-lhe uma pneumonia. Reitero o drama que foi conseguir que o transportassem para o hospital - sentimos na pele que ninguém queria saber. A porcaria do covid até se dava ao luxo de manter ambulâncias reservadas e para um doente em estado terminal, não se conseguia transporte. Não era fait divers, era crítico e seja em que circunstância for, ninguém deve ter que passar por isto.
Ah, afinal estava com uma pneumonia. Depois de tanta súplica para o aceitarem no hospital, ele estava também com uma pneumonia. Eu já tive várias e sei que após a primeira bateria de terapêutica, temos que ser analisados pois é possível ter que prolongar o tratamento. Mandaram-no para os cuidados paliativos a meio, a terapêutica acabou e não houve seguimento. Os Cuidados Paliativos, não têm culpa....o sistema sim. A vida é demasiado preciosa para não se lutar e trabalhar por ela, e o meu padrasto teve azar.
Teve tanto azar que uns dois anos antes lhe é diagnosticada uma neoplasia e o médico de Especialidade lhe diz para lá voltar daí a um ano para nova avaliação. Portanto mandou-o literalmente morrer aos poucos com um tipo de cancro que hoje em dia é perfeitamente ultrapassáveis. Ele acreditava no médico. Todas nós, as suas mulheres o instámos a procurar nova opinião mas ele dizia que o médico é que sabia. Quando se apercebeu da incompetência daquele indivíduo, as metáteses já tinham rapidamente invadido a estrutura óssea. Mas ele, não queria morrer, tinha medo da morte, sofreu, sofreu muito. E ninguém merece morrer assim, com a sensação que todo o sistema, seja por incompetência ou por uma deficiente escala de prioridades, deixa uma pessoa atingir um estágio de sofrimento atroz em escassas semanas.
E embora sejam episódios que nunca esquecerei, quando se cumpre um ano em que os acontecimentos se começaram a desenrolar em catadupa, parece que vivemos tudo na pele outra vez. A diferença é que ele...já não sofre.
Sofremos nós, que cá ficámos, com a saudade é a mágoa...a dor. A minha irmã ainda tem um longo caminho a percorrer para fazer a sua catarse, e ela fez tudo o que podia pelo pai. Foi incrível e eu tenho a certeza que ele partiu com esse consolo. Eu tento não falar no assunto a não ser que ela sinta essa necessidade, e tem sentido, mas jamais lhe posso dizer o quanto sofro e sofrerei pela ausência do seu (meu) pai.
A vida é estranha. Parece que vai contra a ciência. As feridas deviam curar-se, regenerar-se. Estas feridas que ficam, que os meus mortos me deixam, não cicatrizam. Ficam cá, sangram, doem. Aprende-se a viver com este tipo de dor.
Era um mês de que gostava o mês de Maio. Já não gosto assim tanto. Vai trazer-me sempre memórias dolorosas.
“Maio maduro Maio, quem te pintou
Quem te quebrou o encanto, nunca te amou”
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